Direito à assistência social vai além da renda mínima?

Por Parceria Jurídica

15 de julho de 2025

Quando se fala em assistência social no Brasil, a primeira coisa que vem à cabeça é: “tem que ser pobre”. Mas… o que é ser pobre, exatamente? Essa pergunta, por mais simples que pareça, está no centro de uma discussão jurídica e social bem mais profunda do que a maioria imagina. A renda mínima é um critério, claro, mas será que ela é o único? Será que o direito à assistência deve se limitar a uma linha numérica?

O que muitos não sabem é que a Constituição de 1988 reconhece a assistência social como direito de qualquer cidadão em situação de vulnerabilidade — sem mencionar cifras. A lei fala em “garantir a dignidade”, o que é um conceito muito mais amplo que apenas dinheiro no bolso. Vulnerabilidade pode vir de várias formas: abandono, deficiência, violência doméstica, problemas de saúde mental… e por aí vai.

Só que, na prática, a aplicação desse direito ainda esbarra em critérios rígidos. O poder público tende a usar a renda como filtro principal, deixando de lado outros fatores sociais e humanos que também comprometem a vida das pessoas. Isso gera exclusão e obriga muitos a recorrerem à Justiça para conseguir o que, na teoria, já seria garantido por lei. Sim, tem muita gente ganhando benefício só após uma liminar.

Então, sim — é hora de discutir mais profundamente: será que estamos interpretando esse direito de forma completa? Ou estamos presos a uma lógica burocrática que não acompanha a realidade de quem precisa? Vamos explorar esses pontos com mais calma nos tópicos a seguir.

 

Renda per capita: critério técnico ou barreira invisível?

Vamos começar pelo famoso corte de renda. Hoje, para ter acesso ao bpc loas, por exemplo, a renda per capita da família deve ser igual ou inferior a 1/4 do salário mínimo. Isso parece objetivo, certo? Mas, na prática, vira um critério que não acompanha a realidade de muitas famílias. Às vezes, a renda está acima por poucos reais — mas os gastos com medicamentos, aluguel ou fraldas são altíssimos. E aí?

Esse corte rígido acaba excluindo quem está em situação clara de vulnerabilidade, mas que, no papel, “ganha demais”. Isso faz com que muitas famílias desistam ou acabem recorrendo à Justiça para tentar reverter a negativa. E o Judiciário, inclusive, tem sido um dos poucos espaços onde se reconhece que a renda, sozinha, não conta a história toda. Algumas decisões já consideram despesas essenciais e o contexto social.

Mas o problema é que esse reconhecimento ainda é exceção. Na maioria dos casos, o assistente social precisa seguir a norma. Ou seja, a vulnerabilidade real da pessoa pode não ser suficiente para garantir o benefício. E isso gera uma distorção grave: o direito está ali, mas só é acessado por quem tem apoio jurídico ou sabe navegar pelo sistema. E quem não sabe?

 

Documentação exigida: proteção legal ou obstáculo burocrático?

Outro ponto sensível nessa discussão é a papelada. Sim, é preciso comprovar a situação para receber um benefício assistencial. Mas será que o volume e a complexidade dos documentos exigidos não acabam sendo, por si só, uma forma de exclusão? Afinal, quem mais precisa de ajuda costuma ser também quem tem menos acesso à informação e estrutura para cumprir todos os requisitos.

Em teoria, a exigência de documentos protege o sistema contra fraudes. Mas, na prática, ela também funciona como um filtro não declarado. Falta de CPF regular, ausência de comprovante de residência ou um simples erro no laudo médico podem inviabilizar todo o pedido. E nem sempre a pessoa tem meios de corrigir isso sem ajuda técnica ou jurídica especializada.

Saber quais os documentos necessários para dar entrada no bpc pode ser a diferença entre conseguir ou não o benefício. Mas essa informação deveria estar mais acessível — e o processo, mais inclusivo. Porque, vamos combinar, quem vive em vulnerabilidade raramente está com toda a papelada em dia. A burocracia, nesse caso, deveria servir para facilitar — não dificultar ainda mais.

 

A contribuição previdenciária como fator de exclusão

Existe uma linha tênue entre os direitos assistenciais e os previdenciários. No caso da aposentadoria, por exemplo, é preciso ter contribuído para o INSS. Mas e quem nunca conseguiu contribuir? Quem trabalhou informalmente a vida inteira, cuidando da casa, dos filhos, ou fazendo bicos para sobreviver? Essas pessoas ficam onde, exatamente, dentro do sistema?

É aí que entram os benefícios assistenciais, como o LOAS. Mas o problema é que nem sempre essa distinção é clara para quem está na ponta. Muitos idosos ou pessoas com deficiência acreditam que não têm direito a nada porque “nunca pagaram INSS”. Isso gera confusão e, muitas vezes, abandono. Muita gente desiste sem nem tentar.

Por isso, entender os tipos de aposentadoria loas e seus critérios é essencial. A Constituição garante o direito à dignidade humana, e isso não deveria depender de contribuições passadas. A assistência social existe justamente para proteger quem está à margem da formalidade. E, nesse sentido, o sistema precisa ser mais claro — e mais justo.

 

Saúde mental e deficiências invisíveis na análise do direito

Outro aspecto delicado e muitas vezes negligenciado é a questão da saúde mental e das deficiências não visíveis. O sistema ainda tende a valorizar apenas o que pode ser facilmente comprovado — uma amputação, uma condição física evidente. Mas e os transtornos mentais graves? E os déficits cognitivos que impedem a autonomia da pessoa?

Nesses casos, o laudo médico é peça-chave. Só que ele precisa estar muito bem elaborado — descrevendo não apenas o diagnóstico, mas o impacto funcional na vida da pessoa. Um simples erro no preenchimento ou a ausência do código cid 10 correto já pode inviabilizar o benefício. E aí o direito à assistência esbarra, de novo, em tecnicidades que pouca gente entende.

É fundamental que os profissionais da saúde sejam capacitados para lidar com esse tipo de documentação. E mais: que o sistema reconheça que deficiência não é só física — e que a vulnerabilidade pode estar num sofrimento silencioso, mas real. O direito à assistência, nesse caso, também passa por uma mudança de mentalidade. É uma questão de sensibilidade jurídica e social.

 

Judicialização do direito assistencial: solução ou falha estrutural?

Quando o acesso ao benefício não acontece por vias administrativas, o que sobra é a Justiça. E é exatamente isso que vem acontecendo: milhares de pedidos negados pelo INSS ou pelos órgãos locais acabam sendo levados aos tribunais. E, não raramente, são aprovados por decisão judicial. O que isso nos diz?

Na prática, isso mostra que o direito está sendo violado na origem — no momento da análise técnica e burocrática. A Justiça vem para corrigir uma falha, mas isso não é sustentável. Judicializar o acesso ao benefício de prestação continuada deveria ser exceção, não regra. E hoje já virou quase um passo obrigatório para muitos.

Isso sobrecarrega o Judiciário, custa caro ao Estado e, pior, exige do cidadão uma energia e um conhecimento jurídico que ele nem sempre tem. Ou seja, quem consegue acessar a Justiça tem mais chance. Quem não consegue, fica de fora. E aí, a promessa de universalidade da assistência social vira uma loteria jurídica. Não é esse o espírito da Constituição, certo?

 

O princípio da dignidade humana como base interpretativa

Por fim, precisamos falar sobre o que está na raiz de tudo: a dignidade humana. Esse princípio é o fio condutor de toda a política assistencial no Brasil. Está na Constituição, está na LOAS, está nas decisões mais sensíveis do Supremo. Mas, no dia a dia, ele ainda é deixado de lado em nome da “racionalidade técnica”.

A dignidade não cabe em uma planilha. Ela envolve contexto, história de vida, fragilidade emocional e muitos fatores subjetivos que os formulários não capturam. Quando o assistente social ou o servidor do INSS analisam um pedido, eles deveriam ser guiados por esse princípio — não apenas por números frios. O mesmo vale para os sistemas automatizados que estão ganhando espaço.

Aplicar o direito à assistência exige sensibilidade e responsabilidade. O critério da renda mínima pode ser um ponto de partida, mas nunca o ponto final. É preciso olhar para a pessoa — não só para o papel. E, se a legislação já garante isso, o que falta é a coragem (e a vontade política) de colocar essa visão em prática.

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